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terça-feira, 17 de abril de 2012

A ÁRVORE DA LIBERDADE prosa de José Gomes Ferreira





Ontem andei pelas avenidas novas à procura da minha árvore. Aquela árvore esguia, frágil e frouxa que ajudei a plantar quando tinha apenas 11 anos e ainda não separara, na confusão do mundo, o céu da terra e as borboletas das flores.
Foi há muito tempo, em certa manhã de sol barulhento. Na véspera o Sr. Professor prevenira-nos da cerimónia:
– Amanhã não se esqueçam de trazer
lanches. Vamos plantar a árvore da Liberdade!
E eu apareci com a infância mais evidente na fatiota dos domingos, merenda debaixo do braço e «Sementeira» debaixo da língua, pronto para assistir àquela solenidade tão carregada de pompas de mistério.
Formámos a dois e dois. E, com o Sr. Professor à cabeça, partimos para as avenidas novas, nessa altura um dédalo de arruamentos sem prédios nem passeantes.
Após uma longa marcha, olhos fixos nas nucas da frente, parámos. E então o Sr. Professor, em voz rouca que não se harmonizava com o viço primaveril da manhã, pronunciou um pequeno discurso pagão. Referiu-se às plantas, aos frutos e aos ninhos.
Recomendou-nos que não fizéssemos mal aos pássaros. Encheu-nos de flores de retórica. Repetiu o eterno hino à liberdade. E a suar, numa girândola final, rogou-nos que cantássemos, em coro, a «Sementeira».
Obedecemos logo de bom grado, comovidos com as palavras tremulamente fanhosa do Sr. Professor, que, naquele dia, em vez de nos soterrar num quarto sem sol, nos falava da liberdade.
Abrimos as bocas e cantámos. Berrámos. A letra desse hino, a que anda associada uma injusta ideia de ridículo, saiu das nossas bocas numa Primavera de trinta corações a pulsarem em comum.
Terminada a canção, cada um de nós, quase com prazer litúrgico, pegou na pá e começou a deitar terra para a cova onde o Sr. Professor enterrara a árvore sagrada.
Durante alguns minutos trabalhámos com fervor, num arder de olhos em festa – contentes por mexermos em terra, ébrios do cheiro das plantas e das raízes, sob o azul envolvente daquela manhã fecunda.

Eu, pelo menos, trabalhei arduamente. Lancei, incansável, terra e mais terra para a cova.

E quando, por fim, a árvore se aguentou sozinha na alameda buliçosa de crianças adevorarem fatias de pão com manteiga, quedei-me a olhá-la, durante largo tempo, impado de orgulho e fé.
Senti, ingenuamente, infantilmente – como todos os meninos sentiam em 1911 –, que a minha liberdade ficava talvez unida para sempre àquele ser preso ao solo por raízes tão fracas e tenras. Senti...
Mas o Sr. Professor não me deixou sentir mais. Ordenou com secura que formássemos a dois e dois. E daí a pouco tempo deslizávamos outra vez para a escola como um rebanho cívico que cumprira já o seu dever burocrático e diligente de cantar a «Sementeira» e de arremessar algumas pazadas de terra para uma cova.

Depois, nunca mais me levaram a ver a minha árvore. Não sei o que fizeram dela.

Tenho-a procurado tantas vezes em vão! Não a encontro. Não a reconheço.
Árvore da liberdade: onde estás? Responde-me: onde estás? A rasgar ventos? A cobrir de flores as tempestades? Já álguem se enforcou nos teus ramos? Já atiraste pássaros para o céu? Árvore: onde estás?
Já secaste?
(Hei-de ensinar o meu filho a plantá-la doutra maneira.)


José Gomes Ferreira
, in A Memória das Palavras

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